O Sacrifício do Padre Felício





Estamos no ano de 1878;

Apresento-vos o Padre Felício, que se mudou para a nova paróquia transmontana de Rebordochão; embora seja visto como um homem de princípios pela maior parte da comunidade, o Padre Felício é na verdade um predador sexual.

Apresento-vos também Jasmim Cordeiro, um jovem inexperiente de 21 anos, que dá os primeiros passos na adoração de satanás. Para ganhar entrada no Culto do Anjo Caído das Alturas, foi-lhe atribuída uma missão; raptar um padre e sacrificá-lo no Altar de Sangue à meia-noite, nas masmorras do culto.

O ritual do sacrifício é relativamente simples: Jasmim deve abrir o tórax da vítima com um punhal ondulado próprio para o efeito, retirar o coração ainda a bater do peito do padre e proferir as palavras “ego tribuo vos in malum cruor illae sanctus vir , ut a tributum quod testimonium meus fides quod officium ut Diabolus”, ou seja, “Ofereço-te o sangue deste homem santo, como prova da minha fé e dever com satanás”.
Depois, deve terminal o ritual colocando o coração na boca da vítima antes que esta morra.

Eram perto das seis da tarde; o padre Felício estava na igreja, sentado numa cadeira com os pés descalços em cima do altar. Servia-se do vinho sacramental e dumas óstias enquanto admirava um acólito que estava a varrer o chão; deliciava-se particularmente quando o pobre rapaz se baixava para apanhar a pá.

O acólito disse:

-Sr. Padre, vou só lá fora buscar um balde para passar água no chão.
- Vai, meu filho, vai. E vai depressa, porque quando voltares tenho uma surpresa para ti...

-Uma surpresa, Sr. Padre? O que é?
-Se digo, deixa de ser surpresa.

Sorrindo, o acólito apressou-se a ir buscar o balde de água, enquanto o Padre Felício o mirava com olhos de desejo. Passou a língua pelos lábios e de uma vez só bebeu mais um copo de vinho sacramental; quando ia servir-se de outro, surge por trás dele uma figura encapuzada vestida de negro que lhe mete um saco de batatas na cabeça; de seguida, arrasta o aturdido padre para fora da igreja pela porta das traseiras.

Quando o acólito voltou, encontrou a igreja vazia e o vinho sacramental derramado pelo altar.

Saltemos até perto da meia-noite, no grande salão do Altar de Sangue; as masmorras estão mal iluminadas excepto o próprio altar e um palanque onde repousa um tomo ancestral de adoração ao demónio.
Em frente ao altar, sentados e quase fora do alcance da luz das velas, encontra-se uma plateia composta por uma dúzia de homens vestidos com robes negros e capuz; um deles levanta-se, aproxima-se do palanque, descobre a cabeça e prepara-se para dirigir umas palavras à audiência.

Apresento-vos Magus Córnius, o líder do Culto do Anjo Caído das Alturas.
Córnius é um homem de meia idade, alto, careca e com uma farfalhuda barba grisalha; os seus olhos são da cor do fogo:

-Meus irmãos- disse Córnius, enquanto folheava o livro:

-Somos o Culto do Anjo Caído das Alturas.
-O Culto do Anjo Caído das Alturas somos nós. – Disseram os restantes em coro.

- Hoje, o CACA celebra o verdadeiro deus com uma dádiva de sangue.
-Assim o honramos.

-O Mundo é dos fortes.
-Morte aos fracos.

-Fracos são os que distinguem o bem do mal.
-Porque só existe o mal.

-Tragam o prisioneiro!

Dois homens, também encapuzados, trazem pelos ombros o Padre Felício de uma abertura nas catacumbas. O Padre, que tinha os olhos vendados, gritava:

-Quem são vocês? O que se passa aqui?

Magus Córnius ordenou aos homens que atassem o Padre Felício ao altar de barriga para cima; este, continuava a fazer perguntas:

-O que estão a fazer comigo? Que lugar é este?
-Silêncio! – Exclamou Magus Córnius.

Córnius aproximou-se de Felício e passou-lhe a mão pelo rosto; agarrou a venda com os seus dedos longos e finos e, duma só vez, arrancou-lhe a venda dos olhos.
O padre, assustado, fechou os olhos dada a súbita invasão de luz. Piscou-os várias vezes até se adaptarem à claridade, dando então de caras com o sorriso macabro de Córnius:

-Quem é você?
-Magus Córnius, líder do CACA.

-O CACA? Julgava que o CACA era um mito para assustar as crianças.
-Olha à tua volta, somos mais do que um mito.

-O que querem de mim?
-Simples, vamos sacrificar-te.

-Sacrificar-me? Que mal vos fiz?
-Nenhum, que eu saiba. Mas precisamos de um homem puro para iniciar um novo membro.

-Puro, eu?
-Sim, “Padre”.

-Isto é um horrível engano, eu não sou puro!

Córnius sorriu.

-A sério, não sou puro! Sou pedófilo, sou alcoólico! Se querem iniciar alguém, eu sou a pessoa errada!
-Mais uma vez se vê a força do teu “deus”! Se soubesses a quantidade de padres que dizem essas mentiras quando estão nesse altar...

-Mas é a verdade! Juro por Deus que é verdade! Sou um homem mau, ruim! Sou um pecador! Desprezo a igreja, só a uso para fins pessoais! Seduzo crianças, lavo o rabo na terrina de água-benta, uso o dinheiro da caixa das esmolas para comprar vinho...
-Eh lá, calma aí, homem. Vieste para ser sacrificado, não para te candidatares ao meu lugar.

A plateia sorriu.
Felício continuava a gritar, desesperado:

-Estou a falar a sério! Se querem homens puros, conheço um que...
-Silêncio! Jasmim, avança.

Com o capuz a cobrir-lhe o rosto, Jasmim surgiu das sombras e parou em frente altar. Felício continuava a gritar, a pedir a libertação, cada vez com mais força e menos coerência. Jasmim abriu-lhe a camisa, expôndo-lhe o tronco.

Córnius passou o punhal cerimonial a Jasmim, que com uma vénia o segurou nas duas mãos. O líder do CACA retomou o seu lugar na plateia enquanto Jasmim, de frente para o altar elevou o punhal sobre a cabeça.

Jasmim tremia que nem varas verdes sob a pressão da situação. Era jovem e inexperiente, como sabem, e algumas dúvidas começavam a passar-lhe pela mente: deveria mesmo tomar aquele caminho? Teria o direito de tomar a vida a outro homem? Teria a força necessária para renunciar a este caminho?
Ao mesmo tempo, sentia os olhares expectantes dos restantes membros do CACA, enquanto os gritos de horror de Felício se confundiam com os seus próprios pensamentos.

Decidiu então acabar com a indecisão, enterrando fortemente e de um só golpe o punhal no peito de Felício; antes que este pudesse gritar de dor, Jasmim puxou o punhal ainda enterrado e rasgou-lhe a carne com um golpe até à cintura.

Aí sim, Felício berrou de dor. Durante e depois.

Jasmim retirou o punhal com a mão esquerda e enfiou a mão direita no peito do Padre; Felício parou de gritar dada a súbita falta de ar e só demonstrou a dor pela forma como arregalava os olhos e sacudia a cabeça, enquanto Jasmim lhe arrancou violentamente o coração.

Com o coração do Padre Felício ainda a bater na mão, Jasmim ergueu o braço e declamou:

-Ego tribuo vos in malum cruor il...

Não acabou a frase, porque com uma batida o coração saltou-lhe da mão, foi parar ao chão e fugiu para debaixo do altar. Rapidamente, Jasmim pôs o punhal no primeiro sítio que pôde e agachou-se para apanhar o órgão fugitivo. Quando conseguiu, levantou-se e declamou:

- Ego tribuo vos in malum cruor illae sanctus vir , ut...
-Agora não vale a pena, ele já morreu. – Interrompeu Córnius.

- Já? E agora, como faço?
- Jasmim, não tolero muitos erros. Mas no teu caso... Dá cá o coração.

Córnius pôs o coração dentro do peito do Padre Felício e declamou:

- Per meus atrum veneficus , ago!

Felício voltou à vida, gritando de dor; Córnius disse a Jasmim:

-Tenta novamente.
-Como? Não o entendo, com estes gritos...

-Eu disse, “TENTA OUTRA VEZ”!
-AH, ESTÁ BEM!

-E TIRA-LHE O PUNHAL DOS TOMATES, PODE SER QUE ELE GRITE MENOS!
-DOS...? SIM, CLARO, TEM RAZÃO!

Jasmim retirou o punhal da virilha de Felício e fechou os olhos; voltou a enterrar a mão na ferida do sacrificado e arrancou violentamente o órgão sangrento:

-Ego tribuo vos in malum cr...
-Isso é o fígado! –Exclamou Córnius.

Jasmim abriu os olhos:

-O... Fígado?
-Olha lá, mas estás a brincar?

Felício berrava.

-Mil perdões, tinha os olhos fechados!
-Não estou aqui para te perdoar!

Felício continuava a gritar.

-E agora? Põe-se o fígado lá dentro?

Córnius aplicou uma vigorosa chapada na cara do Jasmim e ordenou-lhe:

-Larga o fígado, arranca-lhe o coração e termina o ritual!

Jasmim voltou a fechar os olhos e a enterrar a mão no corpo do Padre Felício. De forma intrusiva, remexia-lhe os órgãos numa procura desesperada pelo coração. Jasmim tremia mais que nunca, enquanto Córnius lhe gritava para completar o ritual.
O jovem remexia cada vez mais desacertadamente e sentia suores frios; quando abriu os olhos na tentativa de ver o que fazia... Só viu a sala a andar à roda e desmaiou.
O barulho que ouvia diminuiu progressivamente, ficou abafado e, por fim, só havia silêncio.

Quando Jasmim voltou a si, o dia estava a amanhecer. Encontrou-se sozinho, deitado no meio do mato. Estava confuso e duvidou da veracidade do que tinha acontecido nas últimas horas, até o primeiro raio de sol iluminar os seus braços cobertos de sangue seco.
Desesperado, levantou-se; desfez-se da roupa cerimonial e lavou numa nascente todo o sangue que lhe tinha ficado colado à pele.
Já limpo e como veio ao mundo, fitou o Sol nascente e ajoelhou-se perante ele, exclamando a chorar:

-Meu Deus, perdoa-me todo o mal que Te causei! Juro solenemente que a partir deste momento, a minha vida Te pertence e à Tua obra e juro também que, quando chegar a hora do meu juízo final, aceitarei o Teu julgamento sem qualquer tipo de reserva!

Após proferir estas palavras, baixou a cabeça ao nível dos joelhos e chorou de arrependimento até ao pôr-do-sol.

Epílogo:

Dez anos se passaram e nesse período Jasmim entrou para o seminário; movido por uma determinação imparável, rapidamente se fez padre e foi-lhe atribuída uma pequena paróquia em Trás-os-Montes.
Jasmim tornara-se um homem bom, defensor dos bons princípios e um valioso membro da sua comunidade; toda a população o adorava, tanto pelo homem que era mas sobretudo pela bondade que representava.

Num Domingo como outro qualquer, Jasmim terminou a sua missa. Como de costume, passou ainda largos minutos à porta da Igreja a conversar com algumas das pessoas da paróquia, dando os seus conselhos costumeiros e saboreando a vida sob a Luz Divina que há muito o guiava.

Quando, por fim, toda a gente regressou a casa, Jasmim regressou ao interior da Igreja. Foi quando reparou num jovem que tinha ficado dentro do edifício, ainda ajoelhado num banco na direcção do altar.
Jasmim reparara no jovem durante o serviço, mas não o tinha reconhecido; concluíra que se tratava de alguém que estaria de passagem.
Posicionou-se ao lado do banco onde se encontrava o estranho, na tentativa de lhe chamar a atenção. Contudo, o jovem não deu a entender que estava a ser observado e continuou a fitar o altar:

-Posso ajudá-lo, meu filho?
-Boa tarde, Padre Jasmim.

Jasmim sorriu:

-Estou em desvantagem, ainda não sei o seu nome.
-Chamo-me José.

-Prazer, José. Posso ajudá-lo?
-Pode. – Retorquiu o estranho, ainda sem olhar para o Padre.


-Como posso ajudá-lo, então?
-Há dez anos, fui acólito na igreja de Rebordochão.

Num segundo, passaram vividamente pela cabeça de Jasmim mil memórias que, embora sempre presentes, tinha conseguido reprimir. Sem perder a compustura, Jasmim voltou a dirigir-se ao estranho:

-Muito bem. E o que o traz por cá, meu filho?
-Não sei o que lhe chamar. Talvez o Destino, Padre.

-José, olhe-me nos olhos e explique-se.

Com um sorriso, José respondeu sem nunca tirar os olhos do altar:

-Ouvi falar de si, Padre Jasmim. A sua história ainda é contada em muitos serões familiares.
-Não percebo. Rebordochão é a minha terra natal, mas saí de lá muito novo.

-Depende da família, não se lembra de mim? Eu era o Zézito, o órfão.
-...Sim, já sei quem és. Claro, vivias na Igreja.

-Tempos que já lá vão, Padre. Como lhe disse, arranjei família.
- Deus viu o teu sofrimento e decidiu interrompê-lo. Fico feliz.

-Duvido que tenha sido Deus.
-Eu não. Deus está sempre presente.

-Posso pedir-lhe uma coisa?
-Podes, farei o que puder.

José virou a cabeça e fitou Jasmim nos olhos:

-Acabe esta frase: “ego tribuo vos in malum cruor illae sanctus vir...”
-...Não sei do que estás a falar. Agora, agradeço que te vás embora.

-Estamos sozinhos, qual é o seu problema?
-Não sei o que pretendes, mas peço-te que saias já!

Rápido como um relâmpago, José levantou-se e agarrou o padre pelo pescoço. Com uma força quase sobrenatural, sacudiu-o várias vezes até o atirar violentamente ao chão:

-Podemos tentar outra vez?

Sentado no chão, Jasmim rastejou para trás enquanto José caminhava calmamente na sua direcção. Quando o padre embateu com as costas no altar e ficou encurralado, José pôs-se de cócoras à sua frente; encostou a cabeça dele à de Jasmim e voltou a perguntar em tom ameaçador:

-Acaba a frase, Jasmim: “ego tribuo vos in malum cruor illae sanctus vir...”
- “ut... a tributum quod testimonium meus fides quod officium ut Diabolus.”

José sorriu maquiavelicamente.

-O que queres de mim?? – Perguntou Jasmim, desesperado.
-Digamos que preciso de um homem puro... “Padre”.

0 comments: