Não me dês o que eu quero





Joaquim andava deprimido da vida. As coisas não lhe corriam nada bem.

Eram duas da madrugada; Joaquim encontrava-se no quarto 51, um quarto de hotel escuro, sujo e envelhecido. Com olhar determinado, acariciava o revólver que tinha em punho, enquanto decidia como acabar com a própria vida; um tiro na testa, na boca, debaixo do queixo, na fonte ou na nuca?

Pousou a pistola na mesa de café, levantou-se e dirigiu-se à janela. De costas para a porta, contemplou-a e ponderou a hipótese de a abrir e de concretizar o suicidio atirando-se por ela fora.



Deixemos Joaquim a ponderar por uns instantes, e centremos a nossa atenção em Felisberto, o psicopata. Felisberto era procurado pela polícia por três homicídios macabros. Era um assassino em série, que escolhia e estudava cuidadosamente as suas vítimas antes de as matar de forma sangrenta. Era um homem que só sentia regozijo com a dor que inflingia nas suas vítimas, enquanto morriam em horrível agonia às suas mãos.


Há semanas que Felisberto seguia Joaquim, e era esta a noite em que o ia matar.

Cautelosamente, tapando a cara, passou pelo lobby do hotel e apanhou o elevador até ao quinto andar.
Mesmo em frente à porta do elevador, estava a porta do quarto 51.

Felisberto olhou à volta. Certificou-se de que não estava a ser observado. Espreitou pelas frinchas da porta e não viu qualquer luz. Concluindo que Joaquim estava a dormir, sem fazer qualquer barulho arrombou gentilmente a fechadura e, com a paciência e sagacidade de um predador, abriu a porta lentamente, entrou no quarto e voltou a fechar a porta.

Pé ante pé, dirigiu-se em direcção à cama até ser surpreendido pelo vulto silencioso de Joaquim. Este, de costas para Felisberto, ignorava o que se passava atrás dele e contemplava a janela, enquanto pedia a Deus que lhe desse coragem para consumar o suicídio.

Quanto a Felisberto, mudou de direcção e com passos felinos aproximou-se das costas de Joaquim.

Pé ante pé, cada passo o colocava mais próximo.
Pé ante pé, aproximava-se das costas de Joaquim enquanto desembainhava a sua longa faca serrada.
Pé ante pé, de faca em riste, subitamente agarrou Joaquim pelo pescoço e exclamou:

-SOU O FELISBERTO, O TEU ANJO DA MORTE, E VIM PARA TE MATAR!
-OBRIGADO, MEU DEUS! OBRIGADO!


Felisberto ficou confuso:

-“Obrigado, meu Deus”?
-Sim, muito obrigado! Foi a providência que te trouxe até aqui!

-Mas eu vim para te matar!
-E eu quero morrer!

-Espera, não estás a perceber. Eu sou o anjo da morte, vim para te matar de forma horrível...
-... E para resolveres o meu problema. Eu não sabia como havia de me matar; se me atirava pela janela ou se usava aquela pistola.

Receando que fosse um truque, Felisberto apressou-se a agarrar a pistola que lhe tinha passado despercida. Decidiu usá-la para pôr à prova a determinação de Joaquim, apontando-lhe a arma e perguntando:

-Com que então, queres morrer, meu querido?
-Sim, quero.

-Eu posso tratar disso por ti.
-E é disso que estou à espera.

-Ai é? E onde queres o tiro? Na testa, na boca, debaixo do queixo, na fonte ou na nuca?
-... Curioso que tenhas dito isso.

-Como assim?
-Esquece. É onde quiseres, vá.

-Então vou dar-te um tiro na nuc... Espera, isto não está a funcionar.
-Isto, o quê?

-Isto, o homicídio. É demasiado rápido e não te estou a fazer sofrer.
-Queres dar-me um tiro na perna, primeiro?

-Sim, quero dizer... não. Estou um bocado confuso.
-Mas afinal, sempre me queres matar ou não?

-Epá, quero! Mas estava à espera que esperneasses um pouco, a piada é a vítima não querer morrer.
-Então estás com azar. Ou estamos os dois, vendo bem as coisas.

-Pois, temos aqui um dilema.
-Sim... Como é que te chamas, mesmo?

-Felisberto.
-Olá Felisberto, sou o Joaquim.

-Eu sei, mas prazer em conhecer-te.
-Queres matar-me?

-Quero... Não, não quero.
-Ao menos tentei. Mas olha, tive outra ideia.

-Qual?
-Podemos fazer isto de novo; eu fico a olhar para a janela, tu apareces por trás e agarras-me, eu faço um ar de assustado e imploro para não me matares, esse tipo de coisas.

-E achas que vai resultar?
-Não custa tentar.

-Tens razão. Então pronto, venho aqui para trás?
-Sim, mas um pouco mais longe, estou a ver o teu reflexo na janela.

-Já estou encostado à parede, não podes fechar as cortinas, em vez?
-Ah, está bem. Boa ideia.

-Vá, então é agora, preparado?
-Não me avises, se não é difícil fazer ar de surpreendido!

-Ah, que estúpido que sou, tens razão!
-Vá, siga.

-Ok. Eu “não” estou aqui e “não sabes” quando, onde e como poderei atacar!
-Certo.

Felisberto fez um compasso de espera.
Depois, pé ante pé, de faca em riste, subitamente agarra Joaquim pelo pescoço e exclama:

-SOU O FELISBERTO, O TEU ANJO DA MORTE, E VIM PARA TE MATAR!
-Ahh...

-...
-O que foi?

-Esse grito foi um bocado fraco...
-Porra, mata-me, vá!

-Não digas isso! Pronto, já estragaste o ambiente outra vez!
-Porrrra! Mas que merda de psicopata és tu?

- O FELISBERTO, O TEU ANJO DA MORTE!
-Então mata-me!

-Foda-se, já te disse que assim, não!
-Então está bem, não me mates!

-Olha, agora é tarde para o choradinho!
-Chiça, também nunca estás contente, pá.


Sentaram-se os dois no sofá. Seguiram-se intermináveis minutos de silêncio desconfortável.
Felisberto tentava arranjar motivação para matar o Joaquim, enquanto Joaquim desesperava de ansiedade com cada minuto que passava.
Incapaz de aguentar a pressão, Joaquim levantou-se e exclamou, decidido:

-Não aguento mais! Vou atirar-me da janela e acabar com isto de vez!


Felisberto agarrou-o:

-Espera lá, não faças isso!
-Mas eu quero morrer!

-Mas se tu te matas, eu não cumpro a minha missão!
-Tu não vais cumprir a tua missão de qualquer forma, larga-me!

-Não, espera! Deixa-me só concentrar um pouco e já te mato!
-Acreditas tanto nisso como eu! Mas olha, tive outra ideia.

-Diz lá, vá...
-Venho a correr desde a porta até à janela; quando estiver em vôo, dás-me tiros com a pistola. Assim, eu suicido-me e tu matas-me. E olha que levar tiros a cair deve-me causar sofrimento.

-Essa ideia é um bocado estúpida.
-Tens alguma melhor?

-Olha, já estou por tudo, vamos a isso.
-Ok. Prepara-te, porque quando estiver a cair tens poucos segundos para me matar.

Joaquim encostou-se à parede mais distante para fazer um sprint em direcção à janela:

-Estás preparado, Felisberto?
-Estou!

-Então, vá: um, dois e três!

Joaquim largou a correr descontroladamente, tropeçou no sofá e bateu com a cabeça em cheio na mesa de café:

-Ai, ai, ai, ai, ai!
-Estás bem, Joaquim?

-Já estive melhor!
-Vá, levanta-te. Queres tentar outra vez?

-Sim, deixa-me só... Porra, dói-me a cabeça.
-Vamos fazer isto ou não?

Joaquim voltou a encostar-se à parede. Largou a correr descontroladamente e bateu com a cara em cheio na janela fechada por detrás da cortina:

-Foda-se, o meu nariz!
-Ó estúpido, então não abriste a janela?

-Eu, estúpido? Tu, que estás aí, não foste capaz de dizer nada!
-Olha, vai pró caralho, sim? Estou a olhar para ti para te dar os tiros na hora certa!

Joaquim, já desesperado, arrancou a pistola das mãos do Felisberto, apontou-a à cara do homicida e exclamou:

-Porra! É preciso muito para me matares? Não custa nada! Encostas-me a pistola à cara, dizes o teu rebébéu do anjo do norte ou lá o que é e...

PAM!

A pistola disparou acidentalmente, acertando em cheio nos dentes do Felisberto.


-AAhhh!- Exclamou Joaquim em desespero, enquanto Felisberto deslizava morto até ao chão, ainda com um olhar esbugalhado e com um sorriso estranho por ter a maior parte dos dentes colados ao que restava da nuca.

Estarrecido, Joaquim deixou cair a pistola secamente no chão e...

PAM!

A pistola disparou acidentalmente, e antes de rebolar para debaixo da cama, acertou na perna esquerda do Joaquim. Com o impacto, este desequilibrou-se e bateu com a cara em cheio na janela fechada por detrás da cortina.
Impulsionado para trás com a pancada, e sem força na perna esquerda, caiu e bateu com a cabeça em cheio na mesa de café.

Com enorme sofrimento, sentindo imensas dores, fincou com força o pé direito no chão; quando tentou dar um passo, voltou a cair. Tinha fincado o pé no que restava da boca do Felisberto, com tanta força que ficou preso.

Aterrorizado, tentou libertar-se, mas o melhor que conseguiu foi tirar o pé deixando o sapato entalado na cara do falecido. Soltou vários gritos, mas progressivamente acalmou-se.
Arrastou-se até ao telefone, sentou-se no chão, e encostado à parede ligou para o 112.


Epílogo:

O quarto estava repleto de polícias e uma equipa de paramédicos prestava os primeiros-socorros a Joaquim. Este, embrulhado num cobertor, disse a um dos paramédicos que o assistia:

-Tenho o pé frio, já foram buscar o meu sapato?
-Já, mas acredite que é melhor ficar descalço.

-Compreendo.
-Deixe, não tarda nada, está numa cama quentinha.

-Ainda bem.
-Mas, conte lá. O que se passou aqui?

-Se lhe contar, nem acredita. Como se chama, Doutor?
-Miranda. Felisberto Miranda.


Joaquim soltou uma gargalhada.


-Acha o meu nome engraçado?
-Amanhã conto-lhe.

-Está bem. Deixe-me só injectar-lhe este analgésico... Ups!
-O que foi?

-É a segunda vez que deixo cair uma agulha hoje, ando um pouco desastrado.
-Eh eh, acontece. Doutor, faça-me um favor.

-Diga.
-Debaixo da cama, está uma pistola... Entregue-a à polícia. Depois, leve-me logo para o hospital, fartei-me de morte para a vida inteira. Aprendi que quero viver.

-Toda a gente quer viver.
-É uma história comprida...

-Muito bem... Deixe-me cá esticar o braço... Ah, cá está ela!
-Sim, mas aponte-a para outro lado.

-Claro, peço desculpa... Ups!

PAM!

5 comments:

Miguel M. disse...

Espectacular!!
Finalmente apareceste no teu melhor.

Um abraço.

Quantum disse...

Aqui o parvo do teu amigo fica sempre encavacado quando tem de lidar com elogios...

Só te digo que quando digo "Muito Obrigado", é mesmo sentido.

:-)

Muito obrigado, rapaz!

Abraço

Anónimo disse...

lol as imagens compõem o ramalhete!
Clássico instantâneo =D
Su

Anónimo disse...

Quase não respirei até ao fim da história! Que suspense...!
Parabéns, o género policial no seu máximo! ***** :)))))

Quantum disse...

Bolas, se não respiraste espero que tenhas lido depressa!

Muito Obrigado.

:-)