Certo dia, enquanto Noé estava sentado à lareira, surgiu do nada uma luz na sala da sua casa; era Deus nosso Senhor que lhe queria falar.
O Todo-poderoso disse-lhe:
- Noé, estou desapontado com o homem. Por isso, quero que construas uma arca gigante.
- Senhor, que mal fiz eu para merecer esse castigo?
- Ouve-me até ao fim. Vais construí-la tu e a tua família.
- Também estás desapontado com eles?
- Não, Noé...
- Não os faças pagar pelos meus pecados, castiga-me só a mim, rogo-Te que...
- Porra, Noé, ouve e cala-te! Decidi lançar sobre a terra um dilúvio para a limpar. Só quem estiver na Arca é que se salvará.
- Ah, já percebi. E para que pessoas é a arca?
- Para ti e para a tua tua família.
- Muito obrigado, Rei dos reis. Mas nesse caso, posso fazer uma arca mais pequena?
É que ando mal das costas, já ando na casa dos 600 anos e não somos assim tantos lá em casa...
- Não, tem de ser gigante, para transportares um casal de cada espécie animal.
- Os animais também te desapontaram?
- Não. Mas quando o dilúvio começar, nem Eu o páro.
- E se usasses outro tipo de castigo? Que tal uma trovoada em que os relâmpagos só acertem nas pessoas?
- Não, Noé. A decisão está tomada.
- Não quero insistir, mas pensa bem, meu Deus. Já viste os animais que poupavas, já para não falar da água?
- Poupava na água, gastava na electricidade.
- Faz sentido.
- Claro que faz sentido. Deus não te daria uma missão tão séria se não tivesse ponderado tudo.
- Portanto, é para levar um casal de cada animal?
- Sim.
- Casais de peixes, também?
- Peixes?
- Sim, peixes e outros animais marinhos; estrelas do mar, ameijoas...
- Ó Noé, esses não é preciso, não achas? Já vivem dentro de água!
- Eu sei, meu Deus. Mas se esse dilúvio é tão arrasador, poderá sem querer exterminar um animal com as correntes de água.
- Onde queres chegar?
- Só queria reforçar que a ideia da trovoada era capaz de ser mais precisa, e...
- ARRE, ousas questionar Deus, o teu Senhor? Constrói mas é a arca que te mandei e pelo amor de Mim, FECHA A MATRACA!!
- Sim, Senhor, meu Deus! É para já!
- VOU-TE ENVIAR UMA LISTA COM OS ANIMAIS DESTINADOS À ARCA! ENTRETANTO, COMEÇA A CONSTRUÇÃO E O PLANEAMENTO LOGÍSTICO DO EMPREENDIMENTO. E NEM MAIS UMA PERGUNTA, SE NÃO SENTIRÁS A MINHA IRA!
E com isto, a Luz de Deus desapareceu suavemente.
Pouco depois, entrou a esposa de Noé pela porta da sala:
- Que gritaria foi esta? O teu patrão veio cá a casa?
- ... Mais ou menos. Pega num serrote e vamos cortar árvores, conto-te pelo caminho.
- Serrote? Árvores?
- Sim, faz o que te digo. E ó mulher, já agora...
- Diz, Noé?
- Sabes se as moscas voam à chuva?
O tempo foi passando e Noé construiu a arca. O Dilúvio estava quase a chegar.
Os animais começaram a aproximar-se da rampa de entrada na arca, par em par, como se um poder divino os tivesse atraído.
De acordo com o plano de organização, Noé colocou o seu filho Sem na triagem.
A triagem era um processo simples; antes de um casal de animais subir a rampa para a arca,
Sem verificava se um tinha pénis e se o outro tinha vagina, de forma a poderem procriar.
Depois, de forma a que o seu pai o ouvisse no alto da rampa, Sem gritaria o nome dos animais que subiam.
Quando os animais chegassem a Noé, este riscava-os da lista para evitar duplicações; o processo terminava quando a esposa de Noé levava os bichos para os respectivos aposentos.
A triagem começou, e Sem gritou:
- Dois cães, um com pila e outro sem, a subir a rampa!
Quando chegaram ao cimo da rampa, Noé riscou-os da lista e disse:
- Confere. A minha esposa vai levar-vos aos vossos aposentos.
E assim ela fez.
Sem voltou a gritar:
- Dois leões, um com pila e outro sem, a subir a rampa!
Noé riscou-os da lista e disse:
- Confere. A minha esposa vai levar-vos aos vossos aposentos.
Sem gritou novamente:
- Duas gazelas, uma com pila e outra sem, a subir a rampa!
Noé riscou-os da lista e disse:
- Confere. A minha esposa vai levar-vos aos vossos aposentos.
Sem voltou a gritar:
- Duas hienas, uma com pila e outra sem, a subir a rampa!
Noé riscou-os da lista e disse:
- Confere. A minha esposa vai levar-vos aos vossos aposentos.
Nisto, interrompe a esposa de Noé.
- Noé, há mais gazelas?
- Não sei, porquê?
- É que tenho arrumado os animais a eito, e mal meti as gazelas ao lado dos leões, os leões comeram-nas.
- Ó raios ma partam, mulher! Não leste as instruções?? Carnívoros com carnívoros, herbívoros com herbívoros!
- Ó Noé, são muitos animais e não me consigo lembrar de tudo!
- Poças, pá, acorda! Raios ma partam!
Noé gritou para Sem:
- Ó Sem, há mais gazelas?
- Não sei, vou dizer ao Cam para procurar!
- O Cam vai procurar... Para teu bem, mulher, espero que haja. Leva-me daqui estas hienas!
Noé continuou a resmungar sozinho, até ouvir outra vez a voz de Sem:
- Ó pai, tenho aqui dois animais, mas algo não bate certo!
- Raios partam, o que foi agora?
- O desenho diz que são elefantes, mas são esquisitos...
- Estou a vê-los, são como Deus os fez! Manda-os subir, que já estamos a ficar atrasados!
- O pai é que sabe! Dois elefantes, um com duas pilas e outro só com uma, a subir a rampa!
- Ó estúpido, as trombas não são pilas! Manda-os subir!
Os elefantes subiram a rampa, Noé riscou-os da lista e disse:
- Confere. A minha esposa vai levar-vos aos vossos aposentos.
Nisto, interrompe a esposa de Noé:
- Noé, há mais leões e hienas?
- Mau. O que foi agora?
- Então, já que o quarto das gazelas estava livre, pus lá as hienas. Só que começaram à pancada com os leões e não sobrou nenhum.
- Nenhum leão?
- Nenhum leão e nenhuma hiena, deram cabo uns dos outros.
- Ó minha granda besta, então e não sabes que as hienas e os leões são inimigos mortais?
- “Carnívoros com carnívoros”! Foi o que disseste, foi o que fiz!
- Olha, lê mas é a lista com atenção e leva mas é daqui os elefantes!
- Está bem.
- E não os ponhas ao lado dos ratos!!
- Está bem, está bem!!
Noé pensou para os seus botões que, por este andar, a terra já estaria seca quando acabassem. Mas cedo afastou de si esse pensamento; concentrou-se na sua tarefa, e gritou para Sem:
- Pede ao teu irmão Cam para procurar também um casal de leões e outro de hienas!
-Está bem!
- E não pares, se não nunca mais daqui saímos!
- Eu não quero parar, mas isto está cada vez mais estranho!
- Ai a minha vida... Despacha-te!
- Como queiras! Dois caracóis, cada um com duas pilas, a subir a rampa!
- Pelas barbas do meu avô, Sem! Não são pilas, são os olhos deles!
- Olha, seja como for, estão a subir!
Noé esperou longos minutos, até voltar a gritar a Sem:
- Manda subir os próximos, que os caracóis nunca mais cá chegam!
- Certo! Dois ursos polares a subir... Espera, pai, os dois têm pila!
- XIÇA, Só faltava esta! Tens a certeza?
- Com estas confusões todas já não sei, mas acho que sim!
Noé, tentanto conter a ira, respondeu:
-Manda subir os dois, trato disso cá em cima!
Enquanto os ursos polares subiam a rampa, um deles pisou inadvertidamente um dos caracóis.
Noé viu o pobre animal a ser esborrachado e ficou vermelho de fúria; num acesso de raiva atirou a lista de animais ao chão e espezinhou-a, desatando a esbracejar e a berrar asneiras que não me atrevo a reproduzir.
Entretanto, os ursos polares chegaram ao pé dele.
Noé recompôs-se e ajoelhou-se. Não para rezar, mas para ver os genitais dos respectivos animais. Apanhou a lista do chão, voltou a conferi-la, e disse aos ursos:
-Pois, parece que houve uma falha na comunicação. Preciso que um de vós volte ao... – conferiu a lista outra vez - ...ao Pólo Norte e que diga a uma fêmea para vir cá. Para castigo, vai o que pisou o caracol.
O infeliz Urso Polar fez meia volta e começou a longa caminhada até ao Pólo Norte.
Entretanto, o caracol sobrevivente chegou ao cimo da rampa e Noé olhou, desolado, para o caracol solitário:
- Ora deixa cá ver, “caracol”. “Caracol”, letra “C”...
Continuou a ler a lista:
- “O caracol é um animal hermafrodita.”
Ao ler a boa notícia, exclamou:
- Ao menos esta correu bem, afinal não são precisos dois! Deixa cá ver qual é o próximo... “Caracoleta”?
Foi quando Noé reparou na casca verde da caracoleta esmagada na rampa.
Vermelho de raiva e a perder o controlo, voltou a atirar a lista ao chão e a espezinhá-la freneticamente; esbracejou ainda mais e berrou asneiras ainda mais feias do que as anteriores.
Nisto, interrompe a esposa de Noé.
- Então, homem, compõe-te.
- Ó mulher, isto há dias...
- Eu sei, querido. Pior, só se chovesse.
- Estás a gozar comigo?
- Ups! Não, desculpa! Foi só uma má escolha de palavras, juro!
Noé, recomposto, continuou a fitar a esposa com um ar frio e desconfiado. Apanhou a lista do chão e, sem qualquer emoção na voz, disse:
-Bom, vamos continuar. Leva o caracol lá para dentro.
-Qual caracol?
-O que está no chão.
-Não vejo nenhum caracol.
-Poças, deve estar aos teus pés!
-Ó homem, vê com os teus próprios olhos se há algum caracol no chão!
-Mas ainda agora aqui estava! Não o pisaste, pois não?
-Eu não!
-Onde é que ele se meteu?
- Ó Noé, estás constipado?
- Que raio de pergunta... Não, porquê?
- Dá a ideia que espirraste em cima da lista, está cheia de ranhoca.
Noé contemplou os restos mortais do caracol na lista espezinhada e gritou para Sem:
- Sem, diz ao Cam para procurar também um caracol e uma caracoleta!
Incrivelmente, o resto do dia correu sem grandes sobressaltos; logo chegou a hora de fechar a arca.
Noé ultimava os detalhes finais:
- Sem, é hora de fechar! O casal de dragões e o casal de grifos já apareceram?
- Não, pai!
- Paciência, ficam em terra.
- Chegou o urso polar que faltava, pai!
- Ah, finalmente. Manda-a subir.
- Só restam dois casais.
- Ó diabo, isso é que é mau. Só tenho lugar para mais um.
- São tigres dentes de sabre e dodós.
- Manda subir os dodós. Esses, ao menos, suponho que não se vão extinguir. E sobe tu também, que começou a chover.
* Terminada a história, uma nota de rodapé.
Segundo a bíblia, Noé morreu com 950 anos e tinha 600 anos quando construiu a arca.
Por essa altura, o seu filho Sem tinha 98.
O outro filho, o Cam, castrou o pai, sodomizou-o e fez amor com a própria mãe.
Se isso é verdade, a minha história também é.
A arca de Noé
Posted by Quantum at 12/22/2010 12:28:00 da manhã
Labels: O estranho mundo de Quantum
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